"Ameaça existencial": China forçou a Ford a levar os carros elétricos a sério
Decisão da Ford de adiar veículos elétricos pode ser um ajuste estratégico, mas o tempo é implacável
Há duas maneiras de analisar a recente decisão da Ford de cancelar um SUV elétrico de três fileiras, adiar uma picape elétrica e se concentrar mais em híbridos no curto prazo. A leitura mais superficial é que a Ford está admitindo, como muitas manchetes afirmam, que os carros elétricos ''simplesmente não estão dando certo" e que os híbridos serão mais adequados para os compradores no geral.
A outra maneira de ler essa mudança é admitir que há forças maiores em ação do que apenas o que vemos nas estradas, e a Ford não está abandonando os elétricos de forma alguma, mas apenas dando a si mesma mais tempo e esforço para criar opções eletrificadas que sejam realmente competitivas com o que está vindo da China ultimamente. E que as tarifas sobre os elétricos fabricados na China os manterão afastados de outros mercados até que a Ford possa entregar modelos mais avançados e, espera-se, lucrativos na segunda metade desta década.
Ford F-150 Lightning l
Para o bem da Ford, espero que seja a segunda. Mas ainda é uma aposta ousada e perigosa, e sem nenhuma chance garantida de sucesso.
Para Patrick George, nosso editor do Insideevs.com norte-americano, a Ford entende o que está em jogo, e as declarações do CEO Jim Farley e de outros executivos da Ford em um recente artigo do Wall Street Journal ajudam a enfatizar isso. Afinal de contas, Farley parece entender o quanto a Ford - assim como a GM e as marcas remanescentes da Chrysler - perdeu participação de mercado para os chamados concorrentes estrangeiros desde seu apogeu na década de 1960. "Já vi esse filme antes" é como Farley descreve a possível concorrência da China nessa matéria; toda a indústria automotiva americana já zombou de empresas como Toyota e Hyundai. E veja onde isso os levou.
Ford Capri 2024
Vale a pena ler a matéria do WSJ na íntegra, mas ela descreve o alerta que a Ford recebeu em uma série de visitas à China nos últimos 18 meses. Veja como Farley deu a notícia a um membro da diretoria após uma dessas viagens:
Em uma ligação no início da manhã com o colega do conselho John Thornton, Farley, exasperado, desabafou.
As montadoras chinesas estão se movendo na velocidade da luz, disse ele a Thornton, um ex-executivo do Goldman Sachs que passou anos como banqueiro sênior na China.
Essas montadoras chinesas de veículos elétricos estão usando uma base de suprimentos de baixo custo para superar a concorrência em termos de preço, oferecendo recursos digitais sofisticados e expandindo agressivamente para mercados estrangeiros.
"John, essa é uma ameaça existencial", disse Farley.
Presumivelmente, durante essa mesma visita, Farley, que além de executivo é realmente entusiasta do setor, aparentemente teve a oportunidade de saber o que que nenhum CEO quer ter saber sobre a concorrência:
No início de 2023, Farley fez sua primeira viagem à China desde que o país foi reaberto após anos de restrições por causa da pandemia. Ele se sentou no banco do motorista de um SUV elétrico da parceira de longa data da Ford, a Changan Automobile, que durante anos foi uma empresa mediana na China, com uma participação de mercado em torno de 5%.
Farley, que corre com carros antigos e tem um conhecimento enciclopédico de modelos de carros, bateu o EV na extensa pista de testes da Changan, no centro da China, enquanto o diretor financeiro da Ford John Lawler seguia na carona. Depois disso, os executivos ficaram sentados em silêncio, atônitos com o progresso que a Changan havia feito. A direção era suave e silenciosa e a cabine de alto nível, com tecnologia fácil de usar. "Jim, isso não é nada parecido com antes", disse Lawler a Farley após à volta.
"Esses caras estão à nossa frente."
A Ford certamente merece crédito por ter sido a primeira a chegar ao mercado com a primeira picape totalmente elétrica e experimentos ousados como o Mustang Mach-E. Esses movimentos fizeram da Ford a marca individual mais vendida para veículos elétricos, atrás apenas da Tesla (embora, ultimamente, o grupo Hyundai composto por Kia, Hyundai e Genesis a tenha ultrapassado em vendas de veículos elétricos quando todas as suas marcas são contadas juntas).
A Ford também demonstrou uma tendência a táticas inovadoras para atrair as pessoas para seus veículos elétricos, como ser a primeira a oferecer acesso à rede Supercharger da Tesla.
O SUV elétrico de três fileiras da Ford, agora cancelado.
Mas os carros elétricos da Ford estão sendo esmagados pelos custos. Eles ainda não são lucrativos e a divisão de veículos elétricos, que a Ford separa de suas unidades de carros a gasolina e comerciais, provavelmente consumirá cerca de metade de seu lucro operacional projetado para este ano.
Isso é de se esperar, já que qualquer montadora aumenta sua cadeia de suprimentos de veículos elétricos e baterias, algo que é, em grande parte, muito diferente dos carros a gasolina. Mas o Wall Street Journal não está necessariamente dando à Ford a aprovação que ela queria. E com os veículos elétricos, o componente mais importante é o mais caro: a bateria. A China ainda é quase totalmente dona dessa cadeia de suprimentos. Embora os Estados Unidos estejam fazendo movimentos para recuperar o atraso - graças, em grande parte, aos incentivos da Lei de Redução da Inflação - a vantagem da China é enorme. Além disso, a intensa competição pela "sobrevivência do mais apto" entre os fabricantes de automóveis na China tem impulsionado avanços incríveis na redução de custos.
Em outras palavras, está claro que, por melhores que sejam o Mach-E e o Lightning, eles são tentativas iniciais de elétricos que simplesmente não funcionarão nos mercados internacionais ou se os chineses chegarem aos Estados Unidos. "A execução de um padrão chinês será a prioridade mais importante", disse Farley na reportagem.
Ford F-150 Lightning em uma estação de Supercharging da Tesla
Essa matéria também diz que o CEO vê os elétricos chineses como "uma ameaça imediata na Europa e em outros mercados estrangeiros, e um risco de longo prazo nos lucros da Ford na América do Norte, independentemente de medidas protecionistas".
A história se encerra com Farley e Doug Field, um veterano da Apple e da Tesla que lidera os esforços de EV e tecnologia na Ford, pensando em como cortar US$ 800 de um protótipo elétrico sem tornar o carro, em suas palavras, "realmente uma droga".
Isso é o que os fabricantes de automóveis da China já descobriram. A Ford também espera chegar lá. Mas agora é uma corrida contra o tempo para fazer isso.
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