Pouca autonomia e muito tempo de recarga são os inconvenientes dos carros elétricos convencionais. O uso de células de combustível, teoricamente, seria a solução perfeita: encha os tanques de hidrogênio em cinco minutos e rode mais de 600 quilômetros silenciosamente e sem poluir. O único resíduo lançado pelo carro ou caminhão no meio ambiente é vapor de água puríssima. A tecnologia vem sendo desenvolvida há décadas e hoje existem dois modelos à venda com baterias alimentadas por pilhas de hidrogênio, como o Toyota Mirai e o Hyundai Nexo, além de caminhões e ônibus.
Há, contudo, desafios que ainda parecem intransponíveis para que esse tipo de tecnologia seja amplamente adotado. Em um mundo onde as baterias para carros elétricos evoluem dia a dia, ainda há motivos para apostar em veículos com células de combustível? A Hyundai acredita que sim, tanto que designou um executivo especialmente para tratar de hidrogênio no Brasil, Anderson Suzuki.
Hyundai Nexo na Hydrogen Expo - Rio (3)
Em fevereiro, Eui-sun Chung, o CEO mundial do Hyundai Motor Group, esteve em Brasília para anunciar investimentos bilionários no chamado hidrogênio verde, que pode ser obtido do etanol. Não demorou e chegou ao país um único exemplar do Nexo, o crossover elétrico movido a hidrogênio que a empresa produz em série na Coréia do Sul desde 2018. Na semana passada, o carro foi mostrado na feira Hydrogen Expo South America, realizada no Rio de Janeiro. Aproveitamos o evento para entrevistar Suzuki sobre o uso do hidrogênio - o mais abundante dos elementos químicos - como fonte de energia para veículos elétricos.
Hyundai Nexo na Hydrogen Expo - Rio
Apenas mil postos no mundo inteiro
A Hyundai desenvolveu sua primeira célula de combustível em 1998 e continua acreditando nessa solução. Passados 26 anos, ainda há situações a serem resolvidas. A principal é criar o chamado “ecossistema do hidrogênio”, que engloba a produção, a distribuição e o uso desse gás como forma de descarbonizar o mundo.
Hoje, em todo o planeta, existem pouco mais de mil postos de hidrogênio para veículos, ou melhor: HRS, sigla de Hydrogen Refueling Stations. A Coreia do Sul é, proporcionalmente, o país mais avançado no setor, com 159 estações em seu território, que é pouco maior que o estado de Pernambuco. Já a Alemanha, que tem a área aproximada de Mato Grosso do Sul, dispõe de 105 HRS. O Japão, um pouco maior, tem 161 postos. Na China há cerca de 230 estações - o que é pouco para um país mais extenso que o Brasil. Nos Estados Unidos são apenas 76, sendo que 66 ficam na Califórnia - e estes, muitas vezes, estão fora de operação por problemas técnicos ou falta de hidrogênio. É uma estrutura ainda ínfima para aplicação automotiva, mas que tem ganhado corpo ano após ano.
O abastecimento é com 700 bar de pressão
Montar um HRS hoje tem custo alto que inclui um poderoso compressor para aumentar a pressão do gás de 20 para 700 bar (no caso dos automóveis) ou 350 bar (para caminhões e ônibus). Também é preciso redobrar os gastos em segurança, já que o hidrogênio explode facilmente quando em contato com o ar, bastando para isso uma faísca. Sua chama é quase invisível. Quem quiser operar uma estação dessas gastará de US$ 3 milhões para cima, um investimento que dificilmente se pagará enquanto houver poucos veículos a célula de combustível nas ruas.
“Tudo se resume a escala. Bastaria ter 15 caminhões abastecendo regularmente, ou 700 carros de passeio, que se atingiria o ponto de equilíbrio do investimento. Estamos em uma transição energética que levará anos, espero que não sejam décadas... A ideia é que se comece a ter mais pessoas usando hidrogênio. É como no tempo em que não existiam postos de gasolina, havia poucos automóveis e era caríssimo montar uma estrutura de fornecimento de combustível”, compara Suzuki.
Hoje, um quilo de hidrogênio nos EUA custa entre US$ 8 e US$ 10 (de R$ 42 e R$ 52 pelo câmbio atual). Na Coréia do Sul, são 8.800 won (o equivalente a R$ 34). Com um quilo de hidrogênio pode-se rodar pouco mais de cem quilômetros em um Hyundai Nexo.
Na Coreia do Sul há 159 estações de recarga
Hidrogênio verde, do etanol
Atualmente, 96% da produção de hidrogênio no Brasil usa base fóssil, a partir do gás natural, um dos subprodutos da extração do petróleo. Quando se aquece o gás natural em alta temperatura em um reformador, um dos elementos liberados é o hidrogênio.
- Usar hidrogênio com base fóssil não combina com a nossa proposta de descarbonizar - explica o executivo da Hyundai.
Para ele, a grande solução para o Brasil seria produzir o hidrogênio via etanol. O álcool é aquecido em um reformador a 600ºC ou 700ºC , produzindo o hidrogênio limpo e dióxido de carbono (emissão que é contrabalançada pelo fato de a cana-de-açúcar capturar CO₂ em seu crescimento).
Os ônibus urbanos a hidrogênio já são usados em várias cidades da Ásia e da Europa
Outra vantagem é que o uso de álcool como base reduziria custos, já que poderia se aproveitar toda a atual infraestrutura de abastecimento no país. Cada posto teria um reformador de etanol para produzir o hidrogênio no próprio local. Assim não seria preciso transportar o hidrogênio, seja por dutos ou usando caminhões, duas soluções que encarecem o uso do gás.
“Acreditamos nesse tipo de tecnologia. A transição energética tem custos altíssimos, e temos que trabalhar com parceiros para reduzir o tempo de implantação. Estamos conversando com universidades, institutos de pesquisa e empresas. Com isso resolvido, a Hyundai poderia vender aqui seus veículos a hidrogênio”, revela Suzuki.
A tecnologia é mais viável nos caminhões e ônibus
Para caminhões e ônibus faz mais sentido
No Brasil, em um primeiro momento, o hidrogênio teria aplicação em veículos pesados. A equação é mais fácil de fechar: quanto maiores são as distâncias a serem percorridas, menor é a eficiência de um caminhão elétrico convencional: as baterias são muito pesadas (o que reduz a carga útil) e perdem-se horas na tomada. Já um caminhão a pilha de combustível que leva 70 quilos de hidrogênio nos tanques demora apenas 30 minutos para ser reabastecido.
Os cavalos-mecânicos Xcient já foram exportados para os EUA e a Europa
A Hyundai já vende duas versões de seu caminhão Xcient movidas a hidrogênio: um baú (toco ou truck, com 400 km de autonomia) e um cavalo trucado (com alcance de 720 km). Há também ônibus urbanos e rodoviários. Os sul-coreanos querem expandir as vendas desses pesados fuel cell para o mundo.
Hyundai Nexo na Hydrogen Expo - Rio
O único Nexo do Brasil
Enquanto os pesados não chegam, a Hyundai trouxe um crossover Nexo para demonstrações no Brasil. Trata-se do carro fuel cell mais vendido do mundo: 37 mil exemplares desde seu lançamento, em 2018, ficando à frente de seu único rival atualmente, o Toyota Mirai.
Em abril, o Nexo foi exposto em um seminário internacional sobre hidrogênio em Piracicaba e, na primeira semana de junho, esteve no Rio de Janeiro, para a mostra Hydrogen Expo South America. A ideia é que fique no país por mais algum tempo, sendo levado a outros eventos.
O detalhe é que, até agora, o Nexo não foi posto para funcionar no Brasil por um motivo prosaico: a falta de bicos com a exata pressão de 700 bar para abastecer seus tanques de hidrogênio (para comparar, a pressão no abastecimento de GNV não pode passar de 220 bar). A falta de postos de recarga é mesmo a maior limitação para o uso desse tipo de carro no mundo real.
A exposição estática do Nexo no Brasil é algo frustrante para quem gostaria de ver a nova tecnologia em ação. Felizmente, já tivemos a oportunidade de guiar o modelo numa pista de testes da Hyundai, na Coréia do Sul.
O Nexo é maior que o Creta e o Tucson
Impressões ao volante
Por fora, o carro parece um crossover comum, com linhas já datadas - o Nexo não passou por modificações de estilo desde que foi apresentado, há seis anos. Com 4,67 m de comprimento e um generoso entre-eixos de 2,79 m, o modelo é maior que os irmãos Creta e Tucson, mas seu desenho equilibrado disfarça bem o tamanho.
O princípio das células de combustível (também chamadas de pilhas a combustível) é semelhante ao das baterias comuns: produzir eletricidade a partir de substâncias que reagem quimicamente entre si.
Como em uma bateria convencional, há anodos, catodos e eletrólitos. A maior diferença é que as células de combustível podem ser continuamente carregadas com um agente redutor (combustível, no caso o hidrogênio) e um agente oxidante (comburente, o ar).
Por fora, um crossover normal
Em ação, o Nexo parece um carro elétrico convencional. De tão silencioso, precisa tocar um alerta sonoro cada vez que se põe a ré. Seu motor de 163 cv de potência e 40 kgfm de torque traciona diretamente as rodas dianteiras.
Aperte fundo o acelerador e o Nexo responderá com uma excelente boa arrancada para um crossover de 1.800 quilos, indo de 0 a 100 km/h em 9,2 s. Seu temperamento, porém, não é dado a emoções fortes, mas suave e civilizado. É como se estivéssemos ao volante de um Volkswagen Taos que não faz barulho.
O conjunto com as células de combustível e mais o motor elétrico vai na dianteira, coberto por uma tampa plástica. Quem o vê com capô aberto pode até imaginar que ali há um motor a combustão. Já os três tanques de hidrogênio têm a aparência dos cilindros de GNV dos nossos táxis. São, contudo, de fibra de carbono e vão deitados lado a lado, paralelos ao eixo traseiro. Juntos, têm capacidade para 6,3 quilos de hidrogênio.
Sob o capô dianteiro, o pacote de células de combustível e o motor elétrico
Sob o fundo falso da mala, uma bateria e os cilindros de hidrogênio
Na traseira, os três tanques e a bateria - na frente, a pilha de combustível e o motor elétrico
Para quem pensa na explosão do Hindenburg a cada vez que se fala em hidrogênio, a Hyundai jura que os tanques estão bem protegidos (são blindados com kevlar) e que dispõem de válvulas e sistemas de proteção em caso de acidente ou incêndio. Sob o fundo falso do bom porta-malas (461 litros) vai uma bateria de íon-lítio, de 40 kWh e 240V, que é carregada pelas células de combustível e alimenta o motor. Já o bico para o reabastecimento de hidrogênio está atrás de uma portinhola como a de um tanque de gasolina normal.
Todo esse arranjo fica longe dos olhos - quem abre a mala não vê os cilindros de armazenamento. A disposição dos componentes resulta em um espaço interno amplo e bem aproveitado. O console alto e cheio de teclas parece coisa de carro-conceito dos anos 80, contrastando com as telas de TFT do painel. Há, ainda, recursos de condução semiautônomos como controle de velocidade adaptativo e o assistente que mantém o carro no centro da faixa.
No painel informacoes sobre quanto ar foi purificado
Em vez de poluir, o Nexo limpa o ar
Graças a seus filtros e a um umidificador, o Nexo remove 99,9% de material particulado fino (PM2.5) por onde passa. Misto de poeira e fuligem da queima incompleta do diesel, esse tipo de poluição provoca pneumonia e asma nas crianças, além de problemas no coração de adultos. A cada hora no tráfego, um Nexo deixa 29,7 kg de ar purificado. Quilos de ar? Para dar uma dimensão, esta é a quantidade de ar que 42 adultos respiram em uma hora.
A Hyundai estima que pôr 10 mil desses crossovers no trânsito equivaleria a plantar 600 mil árvores. E 100 mil carros movidos a pilha de hidrogênio, funcionando por duas horas, purificariam o ar para a população inteira de Seul (9 milhões de habitantes) por uma hora.
Em 5 minutos, 660 km de autonomia
Com uma recarga de hidrogênio que demora apenas cinco minutos, temos 666 km de autonomia (ciclo WLTP) — o primeiro Hyundai fuel cell, o ix35 FCEV, de 2013,fazia só 215 km. Diferentemente dos híbridos plug-in, porém, não é possível recarregar a bateria na tomada.
O conjunto com pacote de células de combustível, tanques de hidrogênio e bateria de alta voltagem tem um custo de US$ 7.200 por carro — o que não é tão diferente do valor de uma bateria de íon-lítio gigante para os carros elétricos convencionais. A promessa é de que as pilhas a combustível durem entre 240 mil e 320 mil quilômetros sem perder as características originais. Daí que o Nexo tem dez anos de garantia.
Mesmo vendido a salgados US$ 65 mil, na Califórnia, já com generosos incentivos fiscais, cada unidade produzida ainda dá prejuízo à Hyundai. É o preço de ser pioneiro.